sábado, 17 de maio de 2008

Sugestões de textos



ELA


Ainda me lembro do dia em que ela chegou lá em casa. Tão pequenininha! Foi uma festa. Botamos ela num quartinho dos fundos. Nosso Filho - Naquele tempo só tinha o mais velho - ficou maravilhado com ela. Era um custo tirá-lo da frente dela para ir dormir.
Combinamos que ele só poderia ir para o quarto dos fundos depois de fazer todas as lições.
- Certo, certo.
- Eu não ligava muito para ela. Só para ver um futebol ou política. Naquele tempo, tinha política. Minha mulher também não via muito. Um programa humorístico, de vez em quando. Noites Cariocas... Lembra de Noites Cariocas?
- Lembro vagamente. O senhor vai querer mais alguma coisa? E me serve mais um destes. Depois decidimos que ela podia ficar na copa. Aí ela já estava mais crescidinha. Jantávamos com ela ligada, porque tinha um programa que o garoto não queria perder. Capitão Qualquer Coisa. A empregada também gostava de dar uma espiada. José Roberto Kely. Não tinha um José Roberto Kely?
- Não me lembro bem. O senhor não me leva a mal, mas não posso servir mais nada depois deste. Vamos fechar.
- Minha mulher nem sonhava em botar ela na sala. Arruinaria toda a decoração. Nesa época já tinha nascido o nosso segundo filho e ele só ficava quieto, para comer, com ela ligada. Quer dizer, aos pouco ela foi afetando os hábitos da casa. Eentão surgiu surgiu um personagem novo nas nossas casas que iria mudar tudo. Sabe quem foi?
- Quem?
- O Sheik de Agadir. Eu, se quizesse, poderia processar o Sheik de Agadir. Ele arruinou o meu lar.
- Certo. Vai querer a conta?
- Minha mulher se apaixonou pelo Sheik de Agadir. Por causa dele, decidimos que ela poderia ir para a sala de visitas. Desde que ficasse num canto, escondida, e só aparecesse quando estivesse ligada. Nós tinhamos uma vida social intensa. Sempre iam visitas lá em casa. Também saíamos muito. Cinema, Teatro, jantar fora. Eu continuava só vendo futebol e notícia. Mas minha mulher estava sucumbindo depois do Sheik de Agadir, nao queria perder nenhuma novela.
- Certo. Aqui está a sua conta. Infelizmente temos que fechar o bar.
- Eu não quero a conta. Quero outra bebida. Só mais uma.
- Está bem... Só mais uma.
- Nosso filho menor, o que nesceu depois do Sheik de Agadir, não saía de frente dela. Foi praticamente criado por ela. É mais apegado à ela do que a própria mãe. Quando a mãe briga com ele, ele corre pra perto dela pra se proteger. Mas onde é que eu estava? Nas novelas. Minha mulher sucumbiu às novelas. Não queria mais sair de casa. Quando chegava visita, ela fazia cara feia. E as crianças, claro só faltavam bater em visita que chegasse em horário nobre. Ninguém mais conversava dentro de casa. Todo mundo de olho grudado nela. E então aconteceu outra coisa fatal. Se arrependimento matasse...
- Termine a sua bebida, por favor. Temos que fechar.
- Foi a copa do mundo. A de 74. Decidi que para as transmissões da copa do mundo ela deveria ser bem maior. E colorida. Foi a minha ruína. Perdemos a copa, mas ela continua lá, no meio da sala. Gigantesca. É o móvel mais importante da casa. Minha mulher mudou a decoração da casa para combinar com ela. Antigamente ela ficava na copa para acompanhar o jantar. Agora todos jantam na sala para acompanhá-la.
- Aqui está a conta.
- E, então, acontecu o pior. Foi ontem, hora do Dancin´Days e bateram na porta. Visitas. Ninguém se mexeu. Falei para a empregada abrir a porta, mas ela fez "Shhh!" sem tirar os olhos da novela. Mandei os filhos, um por um, abrirem a a porta, mas eles nem me responderam. Comecei a me levantar. E então todos pularam em cima de mim. Sentaram no meu peito. Quando comecei a protestar, abafaram o meu rosto com a almofada cor de tijolo que minha mulher comprou para combinar com a maquiagem da Júlia. Só na hora do comercial, consegui recuperar o ar e aí sentenciei, apontando para ela ali, impávida no meio da sala: "Ou ela, ou eu!". O silêncio foi terrível.
- Está bem... mas agora vá para casa que precisamos fechar. Já está quase clereando o dia...
- Mais tarde, depois da Sessão Coruja, quando todos estava dormindo, entrei na sala, pé ante pé. Com a chave de parafuso na mão. Meu plano era atacá-la por trás, abri-lá e retirar uma válvula qualquer. Não iria adiantar muita coisa, eu sei. Eles chamariam um técnico às pressas. Mas era um gesto simbólico. Ela precisava saber quem é que mandava dentro de casa. Precisava sabe que alguém não se entregava completamente a ela, que alguém resistia. E então, quando me preparava para soltar o primeiro parafuso, ouvi a sua voz. "Se tocar em mim você morre". Assim com toda a clareza. "Se tocar em mim você morre". Uma voz feminina, mas autoritária, dura. Tremi. Ela podia estar blefando, mas podia não estar. Agi depressa. Dei um chute no fio, desligando-a da tomada e pulei para longe antes que ela revidasse. Durante alguns minutos, nada aconteceu. Então ela falou outra vez. " Se não me ligar outra vez em um minuto, você vai se arrepender". Eu não tinha alternativa. Conhecia o seu poder. Ela chegara lá em casa pequenininha e aos poucos foi crescendo e tomando conta. Passiva, humilde, obediente. E vencera. Agora chegara a hora da conquista definitiva. Eu era o único empecilho à sua dominação completa. Só esperava om pretexto para me eliminar com um raio catótico. Ainda tentei parlamentar. Pedi que ela poupasse a minha vida. Perguntei o que ela queria, afinal. Nada. Só o que ela disse foi "Você tem 30 segundos".
- Muito bem. Mas preciso fechar. Vá para casa.
- Não posso.
-Por quê?
- Ela me proibiu de voltar lá.









Luís Fernando Veríssimo.












EU, ETIQUETA


Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.



Carlos Drummond de Andrade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esses são ótimos textos para serem trabalhados em sala de aula partindo da temática juventude e comunicação.